sábado, 24 de janeiro de 2009

Racismo no surfe


Por: Paulo Marreco
Data:15/1/2009

Coluna: Alma de surfista


Colored Drinking Racismos. m., doutrina que tende a preservar a unidade da raça e assenta na suposta superioridade de uma raça que se confere o direito de exercer domínio sobre as outras; reações ou atitudes que se harmonizam com esta teoria; mostras de hostilidade face a um grupo social ou étnico.


No princípio criou Deus os céus e a terra. Depois, Ele criou as ondas e, ao final, porque alguém tinha que desfrutar daquele paraíso, formou o homem. Este, por sua vez, usando da centelha criativa que o Todo Poderoso havia lhe dado, inventou a prancha, e foi surfar, e foi feliz, foi muito feliz. Então o diabo, invejoso, muito sacana e mais sagaz do que o homem, plantou em seu coração a semente da arrogância, fazendo-o pensar ser melhor do que tudo e todos, melhor até do que seus iguais. Fê-lo pensar, veja o absurdo, que seu semelhante não era assim tão semelhante. Que havia semelhantes de categoria inferior. E assim criou-se o racismo.


Nós, brasileiros cordiais, cordatos e benfazejos, temos a doce ilusão de achar que em nosso meio não existe tal excrescência; que estamos imunes a essa, pelo menos a essa, artimanha do chifrudo e malcheiroso. Nada mais enganoso (aliás, essa é uma das armas mais eficazes do rabudo: fazer os tontos humanos acharem que ele não existe. Pois sim! Eu é que não caio nessa!).


A única diferença entre o racismo tupiniquim e o dos gringos é que o nosso é um racismo de classe; os pobres são a raça a ser segregada. A imbecilidade do negócio é gigantesca. Até porque, na verdade, só existe uma raça, a humana; não há diferença no DNA de brancos, negros, amarelos ou vermelhos. De resto, as diferentes cores, os tamanhos, é pura criatividade do maravilhoso Artista que nos inventou.


Mas, alguém dirá, Paulo Marreco, você anda meio confuso. Nós, surfistas, somos uns caras legais, boa gente, não discriminamos ninguém, aceitamos brothers de todas as cores. É mesmo, é? Hum, vamos ver: Quando eu comecei a surfar, lá pelos idos de mil novecentos e oitenta e alguma coisa, só havia o surfe, e surfe de pranchinha. Pouco depois, surgiu o bodyboard, e aí se plantou a sementinha da discórdia. Os surfistas, até então donos absolutos do pedaço, sentiram-se no direito de não respeitar as ondas dos esponjas ou chicletes de tubarão, como eram pejorativamente chamados os bodyboarders. Estes, por sua vez, achavam-se mais evoluídos do que os quilhas e se aproveitaram dos bons (aliás, excelentes) resultados obtidos pelos seus atletas no cenário internacional para menosprezar os surfistas.


Não era raro assistir a ásperas discussões dentro d’água, motivadas pela disputa das ondas e acirradas pelas diferenças de tamanho e textura das pranchas. Em seguida, vieram os longboards, e a coisa foi se complicando.


Como os pranchões têm muito mais facilidade (não adianta espernear, é uma questão de física) para entrar nas ondas, os longboarders impregnaram os picos, e tornaram-se um verdadeiro tormento para todos, surfistas e bodyboarders; e agora a tribo, que afinal já não era assim tão unida, estava definitivamente dividida em feudos que, com as raras e honrosas exceções de praxe, dificilmente se toleravam.


Para agravar ainda mais o quadro da cizânia, veio o tow-in, seus jet-skis e o seu rápido desvirtuamento, com surfistas neófitos infestando ondas de um metro a pretexto de treinarem para os dias grandes. Este problema, até onde eu saiba, ainda não ocorre no Espírito Santo, mas isso pode ser apenas questão de tempo... No Hawaii, os simpáticos locais, que já distribuem, alegremente e a torto e a direito, porrada nos haoles incautos, a pretexto de preservar o pico querem agora determinar quem pode e quem não pode surfar em Jaws.


E depois disso, o que virá? Qual será a próxima evolução a desunir os pobres surfistas em seu elemento natural? Pranchas atômicas? Surfistas biônicos? Quilhas de metal? Ou o neonazismo desenvolverá uma nova vertente, o nazisurfismo, e resolveremos nossas pequenas diferenças em Gas Chambers (não o famoso pico havaiano, mas a infernal invenção daquele bigodinho desgraçado, sócio do capeta)?


Pois o que é o racismo, senão o ódio irracional ao diferente, a incapacidade de convivência com o desigual, a intolerância ao que não se encaixa nos meus padrões? Parafraseando de maneira paupérrima Martin Niemöller, o pastor luterano considerado o mais importante ativista da Igreja Protestante Alemã em oposição ao Nazismo, Um dia vieram e levaram meu vizinho que era bodyboarder. Como não sou bodyboarder, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era longboarder. Como não sou longboarder, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho que fazia tow-in. Como não faço tow-in, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar.


Portanto, meus caríssimos e escassos leitores, proponho um pacto, uma campanha pela erradicação do racismo e da intolerância no surfe. Não somos pranchinhas, bodyboarders, longboarders, tow-in; somos simplesmente surfistas, todos nós, habitantes deste pequeno, passageiro e sofrido planetinha Surfe.


Somos um pobre e maltratado país de terceiro mundo, sim, mas não precisamos ser bárbaros. Vamos tornar mais civilizadas nossas relações dentro e fora do mar. Não dispute as ondas, compartilhe-as. Se alguém está remando no pico, não atrapalhe, não entre na onda; espere a sua vez.


Não brigue por causa de uma eventual rabeirada, argumente. Se perceber que isso não adiantará, afaste-se. Seja solidário, seja magnânimo. O mínimo que pode acontecer é você se tornar uma pessoa melhor. E sofrer menos stress. Por mais que isso seja difícil no início (principalmente para os pranchões), se acabou de pegar uma onda, deixe a próxima para seu próximo.


Acabaremos nos acostumando à cordialidade e, surpresa!, acabaremos gostando! Afinal, pense bem: se fôssemos todos cegos, a cor de nossas peles não teria a menor importância. Se não pudéssemos surfar, seriam insignificantes as diferenças entre nossos estimados veículos aquáticos. Daqui do meu cantinho, permanecerei nesta campanha pela harmonia e tolerância entre as tribos do surfe, de lanterna em punho como aquele filósofo grego que, indignado, saía pelas ruas de Atenas, procurando homens de boa vontade. Pelo menos, enquanto não roubarem minha lanterna...


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