segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O Surfista Solitário

Na comunidade do surfe, todos o conheciam. Ou melhor, ninguém o conhecia realmente; mas todos os surfistas, longboarders e bodyboarders da região já o tinham visto, ou já tinham ouvido falar dele. Sim, porque, vê-lo, era fácil; bastava estar na praia onde quebrassem as melhores ondas do dia, e olhar para o line-up; ele certamente estaria no outside. Era sempre um dos primeiros, senão o primeiro, a entrar no mar, e um dos últimos, senão o último, a deixar a praia. Sempre pegava a rainha da série; por mais que a praia estivesse repleta de surfistas, e por mais que os maiores profissionais do esporte estivessem disputando braçada a braçada as ondas, a melhor do dia, a maior do dia, todos sabiam, seria invariavelmente surfada por ele. Pelo Surfista Solitário.

E como ele surfava! Um surfe moderno, de linhas fortes, agressivas; o repertório de manobras incluía uma apurada colocação para os tubos, e os mais variados e inovadores aéreos. Deslizando sobre sua prancha, totalmente à vontade em seu elemento, o Surfista Solitário não surfava: destruía com classe toda onda que aparecia em sua frente. Além disso, o estilo era único, inimitável; nenhum movimento desperdiçado, harmonia total de braços e pernas; a linha que ele desenhava nas ondas era o que mais se aproximava da perfeição em matéria de surfe.

Sempre tinha pranchas novas, e sempre com o logotipo da marca mais famosa de surfwear, seu patrocínio desde que dera seus primeiros passos sobre as ondas.

Nunca disputava campeonatos. Porque aquilo não era disputa, era um verdadeiro massacre; todos os outros surfistas sabiam que, se o Surfista Solitário estivesse na competição, a premiação disponível era a do segundo lugar.

Mas o Surfista Solitário era um sujeito muito estranho. Não falava com ninguém; nunca sorria, não cumprimentava, não andava com ninguém; simpatia não era com ele. Não que fosse grosseiro, arrogante nem desrespeitador; obedecia a ordem natural do surfe, respeitava a todos, dentro e fora d’água; respeitava a prioridade, mesmo que o surfista que a detinha fosse um aprendiz que mal soubesse ficar de pé sobre a prancha.

Ninguém sabia nada sobre ele, além de que era o maior surfista das redondezas, e provavelmente melhor do que a maioria dos atletas da elite; diziam mesmo que era um virtual candidato ao título mundial, e que seu patrocinador, antevendo o talento nato do garoto, o preparava para o Tour desde a mais tenra idade. Os meninos da região cresceram e aprenderam a surfar assistindo suas performances inspiradoras. Muitos tentavam imitar seu estilo, porém ele era inimitável. O Surfista Solitário era um mistério completo, uma verdadeira lenda urbana da tribo do surfe.

Mas, quem observasse de perto aquele homem singular, quem olhasse bem no fundo de seus olhos, perceberia que algo se passava em seu interior; havia algo ali que o atormentava, que o consumia por dentro; uma sombra como de uma tempestade que, lenta e inexoravelmente, ia cobrindo aquela pobre alma.

O que ninguém percebia era que, por trás daquele surfista inigualável, daquele gigante das ondas, havia uma criança em corpo de homem; ninguém notava (nós, homens dos tempos modernos, temos essa incrível habilidade, de conviver sem conhecer; de compartilhar espaços sem compartilhar vidas; de, impávidos, não nos importarmos com os que nos cercam; somos como universos absolutos, suficientes e definitivos em nós mesmos) que o Surfista Solitário era solitário, não porque não gostasse de companhia, mas porque não compreendia o estranho mundo dos homens. Que sua alma, límpida como um brilhante dia de sol e ondas perfeitas, não se adaptava ao espetáculo de egoísmo que o cercava; que ele não compreendia as avarezas, a violência, as pequenas e grandes mesquinharias com que seus semelhantes –semelhantes?- agrediam seus puros olhos de ser elementar.

Que a invasão de seus domínios (não porque fosse senhor daquele espaço, mas porque aquele era seu ambiente natural, o espaço no planeta onde ele exercia sua arte, seu ofício, sua missão) por seres pouco iluminados e pouco predispostos a se submeterem à luz; por imbecis distraídos que não percebiam a força, a energia que poderiam trocar com o elemento água, e que por isso roubavam essa energia; por seres iracundos que espalhavam suas diatribes –e eventualmente, porradas- ao vento, conspurcando a paz daquele santuário natural chamado oceano, desprezando a oportunidade única de ligar-se, pelo surfe, ao eterno; por patetas cegos que, menosprezando a natureza, a criação, deixavam de ser gratos, de unir-se ao Criador; que essa invasão de bárbaros matava, dia após dia após dia, um pedaço dele.

Disputou a primeira etapa do WCT; surpreendeu o mundo ao derrotar os grandes nomes do esporte mundial, só perdendo na semi-final para o detentor do título. Uma carreira brilhante se desenhava...

Então, subitamente, ele desapareceu. Não foi mais visto no free surf, nem tampouco voltou a disputar campeonatos. Ninguém mais o encontrou no surfe, em praia alguma da região. O melhor swell do ano podia estar despejando altas ondas pela costa; ele não foi mais visto. Desapareceu, como a bruma que se dissipa com o calor do dia.

O tempo passou, como lhe cumpre passar. A pessoa que outrora fora conhecida como o Surfista Solitário foi sendo aos poucos substituída pela lenda. Os mais novos não acreditavam em sua existência. Os antigos ainda falavam dele, relembrando suas performances épicas.

Certo dia, perguntaram ao seu antigo patrocinador se teria notícias dele. O velho empresário e shaper sorriu um sorriso melancólico. Nunca mais ouvi falar dele, respondeu.

Era mentira. Estivera com ele no verão passado, e em todos os outros, desde que ele se foi. Mas nunca poderia dizer isso aos outros. Eles não compreenderiam, pobres almas apegadas aos seus carrões, aos seus apartamentos de cobertura de frente para o mar e aos confortos da vida moderna, que o Surfista Solitário, recusando-se a assistir à derrocada de sua raça, ao crepúsculo dos homens, exilara-se numa ilha distante, desconhecida e deserta. Obviamente, cercada, por todos os lados, de direitas e esquerdas tubulares, perfeitas em cada milímetro de sua extensão. Ele nunca revelara isso a ninguém, mas enviava ao Surfista, de tempos em tempos, novas pranchas e alguns poucos itens necessários para a sobrevivência de um ser humano em ambientes inabitados. Nas ocasiões em que voara ao encontro de seu grande e velho amigo, havia surfado, na companhia apenas do lendário Surfista, as melhores ondas jamais surfadas.

De fato, aqueles eram os melhores dias de sua existência. Por aqueles dias, a vida valia a pena. O experiente surfista contava os meses para, em suas férias, ir, com a esposa e os pequenos, ter com aquela criatura singela, e viver, ainda que por alguns dias, a vida como deve ser vivida. Nesta ocasiões, eles pouco falavam; palavras eram desnecessárias, eram incompletas. O surfe era sua linguagem. Passavam os dias surfando, pescando, brincando com os filhos do surfista empresário; desfrutavam do melhor do planeta, ali, da maneira que a vida fora idealizada pelo Pai da Eternidade; aquele era o que restava do Éden na terra.

Não, ele nunca revelaria o paradeiro do Surfista Solitário. Não queria, não podia, correr o risco de levar alguém a descobrir e macular o santuário do surfe onde seu amigo se refugiara.

Quando falavam dele na praia, apenas ouvia, silencioso, as expressões de surpresa e incredulidade dos novos, e de incompreensão dos antigos, diante da incrível história do Surfista Solitário que desaparecera para sempre, tragado pelas profundezas do oceano em algum tubo mágico.

Alguns diziam que ele era algum tipo de santo. A maioria, que era um louco. Uns poucos achavam que era, na verdade, um anjo.

O velho surfista sorria. Seu amigo, o Surfista Solitário, não era nada disso. Era apenas uma alma simples, e por isso nobre, que havia encontrado seu lugar no universo.

Uma alma pura, que amava o oceano.

Alma de surfista.


Por: Paulo Marreco
Data:19/2/2009
Coluna:
Alma de surfista

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